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Mostrando postagens de junho, 2019

Quando eu crescer, serei?

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         Você, menina, um dia será alguém.     Eu, quando criança ouvi isso em todos os lugares, na família, na escola, no médico, na casa de desconhecidos.     A ideia de que eu não era algo esgotou a minha vida naquele momento. Aquilo era pior do que ralar os joelhos e passar remédio logo em diante, pois todo mundo me dizia que eu não existia; e meu joelho parecia mais falso assim.     Aquele que tem potencial para se tornar algo não o é no momento, e nessa situação precisamente o mundo todo me dizia que eu não era uma pessoa. Que era somente um vir-a-ser , e eu que me sentia muito eu, supunha que não tinha valor nada de mim.     Eu me tornaria um alguém quando alcançasse a idade adulta, agora eu era uma sombra dos meus pais, da escola, da igreja, ou de qualquer adulto que me rodeasse e tivesse a seu favor o mérito de não ser criança.     - Faça isso, faça aquilo, aja assim, ouça, pouco fale.     Os adultos, no entanto, não sabiam de nada, ouvi um dia minha mãe dizer pro

Quem é você, professor?

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"Crianças", começa o professor, “Hoje é o primeiro dia de aula depois das férias de julho e eu gostaria de iniciar o segundo semestre fazendo uma pergunta pessoal a todos: o que vocês querem ser quando crescerem?” . Os alunos na sala olham uns aos outros com a impressão de já terem ouvido essa mesma pergunta de outros adultos. “Eu quero ser médico, professor”, responde o Ricardo, aluno que tira as maiores notas da turma. “Ótimo, Ricardo. Ser médico é tão nobre quanto ser professor”. Beatriz ergue a mão direita querendo responder: “Eu quero muito ser veterinária, professor”. De modo altivo, o professor responde que veterinária é a medicina dos animais, uma grande profissão. Lívia levanta a mão e diz que no futuro será advogada e ganhará muito dinheiro. O professor ri suavemente e comenta que é muito bom já ir pensando na futura estabilidade financeira. Conforme a aula segue, cada um dos alunos responde o que será quando crescer, e assim surgem diversos futuros seres: engen

Os Olhos

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 Incerto dia me diz o velho no porto: "Afrouxar dos olhos as rédeas, meu jovem Deixar o olhar se ir De perto mirar glórias e tragédias Viver é sempre chorar e sorrir". E continuou, semblante de morto: "Nada mais objetificante Do que olhos colados em ti diretamente Nada mais aterrorizante Do que os teus cerrados para sempre". Questionei-o ansioso por conforto: "Velho, qual desses sentidos é sincero Olhos do sim ou olhos do não? Podem ser tomados a sério Olhares com tamanha obtusão?" Refletiu e lançou-me olhar torto: Só com a vista me respondeu Que com olhos não se joga Por eles foi ofendido e ofendeu E através deles ainda chora Então, se sumiu a pé o velho do porto: O segui até o longe com a vista E depois nunca mais o vi Em alhures, neste chão sulista Para outrem com os olhos sorri Já hoje me apanho absorto: É que tu viste a mim te vendo E me recordo da reflexão que o velho me deu

Dia partido

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Um dia inteiro, como nos antigos teatros gregos em que a ação se movia em vinte e quatro horas. A vida inteira pode ser qualquer momento? Zero horas do dia de hoje - o dia. Oi, ainda começamos o dia com esperanças? Joana me olha de relance. Mastigando-me para apreciar o sabor. Essas coisas não tem o menor sentido, paremos. Essa água tem gosto de terra, e ainda me lembra minhas origens, minha gente, se é que possuo alguma semelhança, odeio patriotismo. Mas dá um sentido, né? Não, não tenho interesse em adquirir um novo pacote, passe para outro. Sentido de solidão coletiva? Sentido para chorar em grupo quando alguém mais ou menos parecido conosco sofre uma perda irreparável. Você ouviu falar nos homens porcos? Quais? Aqueles homens brancos que me disseram o que é amar, fuder, ou quais são minhas origens e tudo o que significa minha vida? Amanhã preciso acordar cedo, vê se dorme ainda. Vou sonhar com os homens pig. Unha por unha, vou tirando, olhos as sujeiras, penso nesses pedaços de ca

Medo de Escuro

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M edo de pessoas estranhas, medo de tempestade, medo de insetos, medo de se machucar, medo de se perder dos pais etc. Quando eu era criança, não tinha nenhum desses medos que são tão comuns na infância. Poderia até dizer que eu era um menino muito destemido, muito valente, exceto por uma coisa: a noite me assustava. Principalmente no momento de dormir. Sim, o medo clássico de muitas crianças era o meu medo também. Mas juro que não era um medinho de escuro qualquer, era algo que me assombrava e que estava para além do breu da noit e. Quando o sol caía, eu sentia o anúncio do que me esperava, e como eu não podia ficar à noite na rua (e nem fazia questão), tinha que voltar para casa para tomar banho, jantar e me deitar. Porém, era justamente nessa última etapa do dia que eu me atemorizava.  Hora de dormir: eu me via num quarto que era compartilhado por mim e por meus irmãos, três camas que ocupavam tanto espaço, dispostas uma ao lado da outra, que davam a impressão de que as quatro
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Quando os lábios se atreveram (depois de os dentes desconhecerem tal som) a repetir movimento tão orgânico e ordenado e desordeiro e coordenado para falar teu nome e explicar motivos, os olhos reconheceram que ainda havia por ali correnteza. E há. Quatro vezes correnteza. Duas vezes por teu nome. E nenhuma pelo meu. Madalenna Leandra

O erro, a mentira e o engano

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Tudo o que é certo, correto, normal, verdadeiro no ser humano, implica que haja somente um único caminho para ser descoberto, para ser efetuado, dito, pensado; uma única maneira de acertá-lo, chegar à verdade e obter vantagem. Para se acertar, faça isto; para se dizer a verdade, diga aquilo. Enquanto que, ao contrário, para o erro existem infindáveis meios. Para errar, simplesmente faça qualquer outra coisa coisa que não o acerto. Somente uma verdade e infinitos enganos. Mas é aqui que eu decido me enveredar pelo caminho mentiroso: o equívoco e a mentira são as únicas realidades onde pode haver qualquer autenticidade e originalidade. Por outro lado, qualquer coisa que se pretenda como verdadeira em si mesma acaba por afunilar toda a existência num sentido estrito desprovido de multiplicidade. Pode-se ser muitos contanto que não haja verdade. O erro e a contradição geram um atrito que eclode em inúmeras direções. No acerto não se é nada, só uma palavra, uma frase, uma definição; não h

Amiúde Insensatez

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Toda vez que me encontro no reflexo Nessa deformada e cinza criatura Uma áspera amargura  Toma conta de todo o meu Ser Toda vez que concluo que nada possui nexo Um único pedido torna-se digno de se fazer Por favor, poderia matar em mim Essa enorme vontade de viver? Toda vez que me assusto todo perplexo Com um mundo onde amar não é ser companheiro Me sinto como um solitário estrangeiro Pária desse chão onde nascer é começar a morrer E toda vez que a indiferença azeda o nosso sexo Viro-me e escondo o meu rosto no canto Único local que não perdoa nem o santo De tudo o que me faz sofrer...                                                     Erik Rosa

Dostoiévski não me fez chorar

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Durante a minha releitura de Crime e Castigo, uma questão que o personagem Marmieládov faz ao protagonista me chamou demasiadamente a atenção, eis-a: "Porque eu não tinha para onde ir. O senhor pode compreender o que significa isso de não ter para onde ir?". Mas quem sabe se Raskolhnikov pode compreender? Marmieládov não tem teto. Não há lugar, uma casa, um lar. O que resta para ele é ficar perambulando de um cômodo sujo a outro. A miséria é a sua mais íntima familiar, por isso não tem parar onde ir.  Mas naturalmente que tudo isso não passa de um disparate meu! É claro que o autor compreendia mais do que isso de não ter uma casa para morar, e, dessa forma, jogou todo o insustentável peso da seguinte sentença sobre mim: o problema é maior que isto, como se tudo se haveria resolvido caso Marmieládov possuísse teto, ou até mesmo se tivesse riqueza. Mas é de algo muito mais sério que estamos falando. Não existe localidade alguma que dê conta, lugar algum no mundo que sirva p

Um Sonho

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Afetos que atravessam esse corpo, ilusão de contato real Ou ilusão de solidão momentaneamente derrubada Derrubada por uma cascata, cascata de momentum De sentimentos, rebentos, que florescem aos infintos ventos Ora cara vida... Se a conexão é uma ilusão, que doce ilusão... Talvez necessária ilusão em um mundo Ora árido de significação, ora árido por condição... Condição de vir-a-ser, que nunca vem-a-ser Condição de uma sede, nunca saciada Que seja saciada ao menos nos sonhos Nos sonhos acordados desse caos, profundamente real...                                         Filipe Zoppo

Amor de moral

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O que é o amor? É o que leio nos livros? Ouço nos discos? Vejo nos filmes? É o que está na boca do povo? O amor ideal? Amor da moral? O que é, então, o amor, se não o sinto? A não ser como um sufocante cinto Como uma eterna espera pelo amanhã Que, em sua fugacidade, nunca vem Pois o amor é coisa do depois. O que é esse amor Que em sua própria origem quimérica Não se permite a existência? Do amor definido pela falta quero a lonjura Que não encarda à noite os meus sonhos Não modifique as minhas já fragmentadas lembranças Que amiúde tenha a dignidade De bater à porta quando cogitar se adentrar Para que eu calmamente saia pelos fundos E o deixe plantado, prostrado Assim como eu: Só, abstrato, hipotético "Chorando feito fogo à luz do Sol". Esse amor que é "ídolo" - uma palavra Por não se achar na vida não a conhece Não recorda e tampouco se esquece Não é e não virá-a-ser Vazio que é, não pulsa - não morre.

Amor?

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          A palavra amor anda sobrecarregada, e se houvesse um jeito de parar sua falta de ação, Ana já teria feito algo para que o equilíbrio soubesse brincar com a ideia. Ela tinha pouca afeição por escrever sobre amor, ou ler, não porque fosse avessa a ele, mas porque supunha que ele não existia de fato, ainda. Não porque ele acabasse, mas acreditava que o que não começa não pode acabar. O amor é palavra morta e só palavra viva é ação. A palavra morta é aquela que de tanto se esconder atrás da ignorância do que diz, ela não só não tem sentido nenhum, como não vive em realidade nem quando é dita ou pensada.           A palavra raiva é que por enquanto é viva. Nem todas às vezes, mas na maior parte, pois acompanha o corpo quando é dita. A raiva palavra-viva-ação tem lugar especial na mente-coração, porém a palavra-morta amor só figura no mundo como afeição e carinho, seus potenciais substitutos, os quais tem proximidade, contudo, ocupar um lugar não é estar no lugar. Ana começava a

A (des)razão desses escritos

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Esses escritos não são dedicados a ninguém, e entretanto, a todo mundo. Seja quem for que os leia, não importa. Sempre me perguntei quais seriam as razões pelas quais alguém registra um pensamento ou narrativa numa folha de papel em branco ou em alguma tela. Deve haver inúmeros motivos. Eu mal conheço os meus. Começo a escrever aqui porque quero ter um filho. Um filho, ainda que prematuro e imperfeito, com erros gramaticais e má ortografia. Mas por que um filho, você me pergunta? Bem, acho que poucos são aqueles que desejam morrer. E, de alguma forma, todos buscam a eternidade. Escrevo agora porque quero intensamente o amanhã, não como um querer consciente e arquitetado, mas como algo que brota de dentro e impulsiona a deixar uma marca, um risco, uma continuidade, um respiro. Quero esse filho porque a morte me assombra, escrevo porque não quero morrer, mesmo embora eu saiba que escrever me faça ficar ainda mais perto da minha morte. A princ ípio, a ideia é escrever o que vier à ca