Quando eu crescer, serei?

    
    Você, menina, um dia será alguém.
    Eu, quando criança ouvi isso em todos os lugares, na família, na escola, no médico, na casa de desconhecidos.
    A ideia de que eu não era algo esgotou a minha vida naquele momento. Aquilo era pior do que ralar os joelhos e passar remédio logo em diante, pois todo mundo me dizia que eu não existia; e meu joelho parecia mais falso assim.
    Aquele que tem potencial para se tornar algo não o é no momento, e nessa situação precisamente o mundo todo me dizia que eu não era uma pessoa. Que era somente um vir-a-ser , e eu que me sentia muito eu, supunha que não tinha valor nada de mim.
    Eu me tornaria um alguém quando alcançasse a idade adulta, agora eu era uma sombra dos meus pais, da escola, da igreja, ou de qualquer adulto que me rodeasse e tivesse a seu favor o mérito de não ser criança.
    - Faça isso, faça aquilo, aja assim, ouça, pouco fale.
    Os adultos, no entanto, não sabiam de nada, ouvi um dia minha mãe dizer pro meu pai aos berros que casou errado e que se pudesse jamais faria os três filhos com ele. Eu não sei por que ela me dava tanto conselho, se queria apagar um pouco do tempo. Minha mãe queria negar que era alguém. Além de querer negar minha existência que somando ao que me diziam já não existia pelo menos duas vezes.
    Esse "você vai ser alguém quando crescer" parecia mais era uma piada, pois eu olhava para todos os adultos que conhecia e eles eram medonhos. Cheios de medo, dor, desamor. E eu tinha medo do que seria me tornar isso. Era engraçado, mas talvez fosse melhor que eu não fosse ninguém mesmo, pois pelo menos podia brincar sem ter certeza de que eu era alguém cheio de inseguranças adultas.
    Mas logo depois eu já sabia que pelo menos direito de ser alguém eu devia ter, só que eu não precisava crescer para isso. Eu era alguém. Todo dia eu descobria algo novo na época, acho que isso não é função de quem já é, parte desse medo da infância vem do medo da mudança, as pessoas supõem que o ser não suporta a mudança. Se são, são.
    E eu sabia desde sempre que eu era, desde novinha, acho que desde que eu olhava para as minhas mãos, para o meu corpo e sabia que eles pertenciam a mim e que jamais seriam de outra pessoa em hipótese alguma, eu sabia que eu era alguém. Foi depois que eu comecei a entender que esse ser alguém para as pessoas cabia a uma série de expectativas, e que os que estavam fora dela "tinham" menos valor, até a ponto de não serem considerados alguém.
    Tudo o que eu pensava, não seria de um ser? Seria de quem? Se eu sentia e ninguém mais no mundo podia sentir exatamente o que eu sentia, como poderia eu não ser alguém? Como poderia eu ainda estar na fila de espera para me tornar uma pessoa, quando nasci pessoa, quando a partir do momento que saí do ventre da minha mãe já podia sofrer as dores e os amores da vida? Eu só seria alguém quando tivesse um crachá dizendo minha profissão? E se eu fosse como meu tio que odeia o que faz, eu ainda seria uma pessoa? Ele é uma? O mundo "de quem é", seria o mundo das aparências? Porque se meu tio odeia a pessoa que construiu para ser (pois se pudesse desfazia-se disso), mas se mente para as pessoas que é algo do qual se orgulha, e tira fotos mostrando isso, quer dizer que ele é uma pessoa, e eu que criança não me odeio, não sou ninguém? Essas coisas rondavam minha cabeça e ainda pairam sobre ela.
    Eu quase rio quando penso, mas é uma risada triste, que o homem não suporta sua existência, e limita um ser numa função, que absorve de si somente um fazer para além de si, ele só é algo, quando não é. Contudo, eu também gostaria de saber o que é que é. Hoje creio que nada é. Será que algum ser ou alguma coisa nessa vida pode somente dizer "eu sou"? Será que estavam certos aqueles que diziam que o ser não suporta a mudança? Será que o ser suporta alguma coisa? O ser suporta o ser humano? O humano suporta o ser? Rio de novo, mas sem graça. Talvez menina, você seja alguém, mas acho que não.



Jesline Cantos
     


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