A vida inteira

    Com as pontas dos dedos, a princípio você nota a suavidade, o relevo macio de um rosto recém descoberto. Em seguida, o aroma doce que afaga os teus sensores olfativos, o cheiro que propulsiona o teu coração a bater mais forte. Depois, algo que ela diz lhe penetra os ouvidos como o mais eufônico dos sons, um deleite para quem não quer mais nada, a não ser estar ali. Por último, tuas pálpebras semi abertas captam uma paisagem e uma espécie de alucinação é projetada na retina, um desvario que toca, cheira, fala e vê. Então, em completa imersão, o tempo pára e a música toca.

No pienso en ti
sólo te siento
pasando por mi
como un dulce viento

As quatro paredes do quarto, muito próximas uma da outra, parecem condensar a atmosfera sutil criada pelos dois corpos embalados pelo som da canção. As palavras trocadas vêm e vão, se tocam como formigas que se beijam antes de continuar o seu caminho. Os olhares atravessados anunciam a colisão dilacerante entre dois mundos, um fenômeno de união único e irreplicável. Você, deitado ao lado dela, está no limite entre o celestial e o terreno, levitando em um espaço sem nome entre duas realidades perpetuamente distintas. E você sabe que este momento não irá durar muito, e que por isto precisa não desperdiçá-lo, pois entende que ele é tão raro quanto é curto. O espantoso, você percebe, é que não é preciso fazer nada para aproveitá-lo, somente estar ali, sem necessidade de se inclinar para qualquer direção. Tudo o que você deve fazer é permitir que a sensação desse momento te atravesse, sem pensar em mais nada. Portanto, você repousa, descansa o corpo e a mente na superfície aveludada do instante perfeito.

Porém, você se sente puxado por uma perturbação que te traz de volta para a realidade terrena do quarto. Ela se levanta da cama e olha ao redor à procura de suas roupas. A imagem da sua nudez intensifica a certeza de que você retornou ao mundo da carne, ao mundo dos vivos e dos que sofrem. Você aponta para um dos cantos, onde a calcinha dela se segura presa em dos braços da cadeira. Ela agradece e diz que vai ao banheiro e que já volta. “Sim, estou no mundo terreno”, é a sua constatação feita enquanto ela deixa o quarto.

Você olha para o teto e reflete que para além dele existe o céu com as suas nuvens e as suas estrelas. Pensa que a infinitude deste céu poderia muito bem caber em um espaço limitado como este quarto, por exemplo. “O infinito é palpável e apreensível”, você conjectura. Um instante poderia valer pela vida inteira. Um instante poderia valer pela vida inteira? Será? O que ela teria a dizer sobre isso? Então você salta da cama e, mesmo em total nudez, vai atrás dela para saber o que ela pensa a respeito. Porém no meio do caminho você sente um frio acompanhado de uma sensação estranha que logo se transforma em medo. Você chega até a porta do banheiro, está fechada. Contudo, não há luz passando por debaixo da porta. “Não há ninguém aqui”. Você abre a porta e realmente não há ninguém. Vira o corpo e vai até a cozinha, “talvez ali”, você pensa. Não, ninguém. Então, desvairado, você retrocede para o quarto e se precipita pela janela, olha para os dois lados procurando, mas não vê nenhuma alma nas ruas. O medo aumenta tanto, que por fim desaparece, e então você olha para o céu e tudo parece ficar devagar, o movimento é quase suspenso e só a música ainda ressoa.

Brindo a todo lo que quiero dar
A todo que está punto a empezar

erik rosa



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