Da vida ao papel

Quando a diretora finalmente virou de costas e foi para a sua sala, passaram pela minha cabeça, como um relâmpago, os acontecimentos do dia até aquele momento. Ainda eram dez e pouco da manhã, mas, no que diz respeito aos meus dias corridos, pouco já basta para entender em qual solo estou me deslocando.

O alarme desperta. São seis da matina, em ponto. Nem a força poderosa dos deuses poderia ser maior que a minha vontade de permanecer na cama, sentindo o calor, envolto no macio. Levo cerca de dez minutos para, então, conseguir pular da cama. O frio, que frio! Uma garoa lá fora. Esse é sempre o momento em que me pergunto por que diabos escolher o sul do sul como fuga dos meus problemas paulistas?

Estou de pé sob a proteção da parada de ônibus. O clima riograndino obrigou-me a adquirir um sobretudo, caso contrário eu não faria frente à chuva e ao vento enquanto espero o motorista de sempre. Sou o primeiro a embarcar. Bons dias trocados, e então me sento no primeiro banco. Coloco meus fones de ouvido. Só falarei com alguém quando chegar à escola onde sou estagiário. Poucos minutos e desço do ônibus. Me apresso para fugir da garoa e entro no restaurante universitário. Sirvo o meu café preto com um pãozinho. Enquanto como, penso. O café desperta a minha mente, que se põe a viver à parte da minha vontade. Penso demais. Somente me acordo nesse horário porque tenho de ir à escola. Somente vou até lá porque, além de tudo, preciso de uns trocados. Frio e água por uns trocados. Penso na minha mãe. Um dia, quando eu era bem mais novo e ainda morava com ela, percebi que adoeceu e teve que ir ao hospital, e depois precisou ficar por um tempo sem trabalhar, para se recuperar. Era pneumonia: contraiu por causa da rotina. Levantar-se cedo com o tempo ainda frio, ir às casas das madames para lavar o chão, os móveis, as vidraças. Todos os dias. Ela, ainda bem, sobreviveu às tosses e às dores no peito, mas ainda hoje o que precisa fazer é acordar cedo para limpar. Frio e água por uns trocados. Me levanto, saio do restaurante e começo a caminhar. Agora, daqui até a escola, são uns dois quilômetros a pé. Não tem ônibus que me leve até mais perto de lá. Embora isso possa ser um problema para outras pessoas, para mim não é. Eu costumo apreciar esse momento de caminhada. Exceto hoje, porque ainda chove, fraco, mas chove. O sol, aos poucos, coloca-se como protagonista no céu, e a garoa, devagar, vai deixando de cair, até finalmente desaparecer.

Chego ao bairro onde fica a escola. Lugar periférico. Comércios simples e casas humildes. Valetas, esgoto a céu aberto. São sete e alguma coisa da manhã, não há muita gente nas ruas, mas as que passam, eu vejo, se parecem muito comigo. Uma senhora, do lado de lá da cerca, bate peças de roupa e as estende no varal, antecipando o calor do sol. Poderia ser minha mãe, minha avó, pois em outro lugar elas também estão a fazer isso. Um senhor passa com sua bicicleta velha carregada de ferramentas. Poderia ser meu pai, que a vida toda subiu e desceu as ladeiras com sua bicicleta cheia de pincéis e latas de tinta. Mais adiante, se equilibrando numa posição perigosa, há um rapaz, novo como eu, encaixando as telhas no teto de uma casa. Então, por um instante, eu olho diretamente para o sol e minha vista fica ofuscada. Espero que hoje o tempo não esquente muito, que o sol não castigue quem trabalha logo debaixo dele, como esse rapaz. Poderia ser eu. Em outro tempo fiz a mesma coisa. Apesar de ser uma tarefa bastante lúdica, adicionar telhas no teto de uma casa é torturante quando a bola de fogo no céu quer queimar a todos. Eu tive de não me deixar abater pelo solaço do verão paulista quando precisava trabalhar para conseguir o dinheiro necessário para comprar a passagem aérea que me levaria até o Rio Grande do Sul para estudar. Levantar paredes e carregar cimento escada acima, das sete às dezessete para poder estudar. Naquele tempo eu descobri o significado real de cansaço físico, pois, ao findar o dia, eu mal conseguia pensar, só queria dormir. A realidade gritante repete na minha cabeça: todas essas pessoas que vejo no caminho se parecem comigo. O cabelo crespo, a pele escura, o olhar longínquo.

Na escola, tudo perigosamente normal. É segunda-feira e quase ninguém quer mesmo estar ali àquele horário. Mas como todos nós repetidamente assassinamos a vida em nome do ritual, então tínhamos que estar ali, esforçados, mas insatisfeitos. A aula de matemática não está nada atrativa, as crianças olham mais para a janela que para o quadro. Dois mais dois nem sempre são quatro, é o que penso. O sinal toca, hora do recreio. O sinal toca, acaba o recreio. Hora do meu lanche. São dez da manhã e, enquanto tomo mais um café na companhia das professoras e cozinheiras, a diretora vem em minha direção.

– Nossa, Erik, como tá grande o teu cabelo! Mas, vem cá, é teu mesmo? Posso tocar com a mão?

Todos me olham, fixamente. Na verdade, não para mim, mas para o meu cabelo. Eu não sei muito bem o que dizer como resposta. Durante toda a minha vida eu sempre raspei o meu cabelo. Minha mãe todo mês pegava quaisquer dez reais e me levava ao cabeleireiro para aparar os fios duros que saíam da minha cabeça. Enquanto ela alisava os dela, eu raspava os meus. Mulher do cabelo crespo tem que alisar, homem do cabelo crespo tem que raspar, essa era a regra incondicional que eu silenciosamente aprendi sobre o nosso cabelo. Minha mãe infelizmente ainda continua na prisão do alisamento enquanto eu consegui me livrar da raspagem obrigatória. Há três  anos não raspo e venho mantendo meu cabelo como um volumoso black power. É deveras assombroso o quanto esse traço físico pode significar na vida das pessoas, e, no meu caso, permitir o crescimento do meu cabelo tem me trazido muito orgulho. Sim, sinto orgulho, mas agora, nesse instante, fora do mundo das ideias e dentro do mundo real, eu não sei o que responder à diretora. Fico em silêncio, segurando a caneca e olhando fixamente de volta para a mulher. Penso em sua branquitude, seu cabelo liso, sua posição, seu nome de origem europeia. Penso no abismo entre nós.

De repente, alguém da cozinha grita alguma coisa e puxa conversa com as professoras, extinguindo assim o silêncio, escondendo os vestígios: de um lado, do embaraço; do outro, da violência. Quando a diretora virou de costas e foi para a sua sala, eu mentalmente refiz os meus passos desde que acordei até ali. Preciso voltar também para a sala de aula, há mais um período pela frente.

erik rosa 



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