Oscilações

    Um susto. Um sobressalto. Era de manhã. Eu, depois de algumas horas, voltei a respirar voluntariamente, sentindo o ar matinal que permeava completamente o quarto de dormir. O sono fora intranquilo, agitado, perturbado por imagens difíceis de discernir. Despertei sem cerimônias devido ao estímulo abrupto. Encharcado de suor, como se tivesse sobrevivido a um afogamento. Mirei para o lado, só para ter certeza, só para garantir. Ela ainda estava ali. Levantei devagar, sem fazer ruído, coloquei um dos pés no chão, depois o outro. Sentado na beira da cama, estranhei profundamente o quão silenciosa era a minha vida diurna em relação à noturna, o quanto que, ao dormir e sonhar, parecia haver mais movimentos, balanços e oscilações do que no estado de vigília. A quietude do quarto, da casa, da rua, contrastando com o barulho dos tambores do sonho, da fuga. Depois de me erguer, segui aquele mesmo velho caminho. O banheiro, a água fria, o espelho. O espelho. A fuga do espelho. O corredor, a cozinha, o café, o vapor. 

    – Bom dia. Dormiu bem?
    – Sim, muito bem. Se eu sonhei, não me lembro. E tu? 
    – Eu, ao contrário. Sonhei demais, quase não descansei. Toma, preparei a tua cevada, já que não toma café. Vou descortinar a janela. 

    O Sol, demasiado tímido, ainda não tinha certeza se iria surgir em toda a sua redondez no fundo azul do céu. Nuvens o tapavam, como se houvesse alguma vergonha em mostrá-lo para mim. Não descortinei a janela por completo, apenas uma parte. A meia luz esbranquiçada preencheu o aposento, dissipou a escuridão e deu contornos ao lençol, à cama e à ela. Ao seu lado me sentei, com a caneca preenchida de café perfeitamente encaixada entre as duas mãos. O vapor subindo, o aroma se espalhando. 

    – Então, com que sonhastes? 
    – Eu estava fugindo, correndo. De novo.

    Era uma repetição. O sonho em que algo ou alguém está me perseguindo ocorria com uma regularidade espantosa. Somente alguns poucos sonhos meus se furtavam totalmente de representar alguma coisa sempre em meu encalço. Era verdade também que nos últimos meses esses sonhos de perseguição haviam aumentado de frequência e de duração. 

    – Eu estava fugindo, mas desta vez não era de meu pai, de uma gigantesca aranha ou qualquer outra coisa que o valha. Eu fugia sem parar e não sabia de quê. Simplesmente eu fugia de algo, tudo o que eu sentia era um medo constante e um impulso enorme, uma intenção inexorável de fugir, como se fosse uma queda. Mas assim como nos demais sonhos dessa natureza, havia angústia. De fato, esses são todos sonhos angustiantes, como estamos acostumados a falar, não é? Essa angústia, mais ou menos desesperada, nascia do contraste entre eu estar sempre em fuga com a certeza de que, não importasse onde eu me escondesse ou o quão longe eu pudesse ir fugindo, Aquilo sempre saberia me identificar e me encontrar e fazer seja o que fosse comigo. Pensando agora sobre isso, parece-me evidente que a angústia é causada tanto pela liberdade quanto pela extrema falta dela, não achas? Quando estamos frente às mais diversas possibilidades da vida, no momento da escolha, sentimos um desamparo por ter que fazer isso totalmente sozinho; mas quando a situação se inverte, quando o nosso destino é absolutamente um, sem a menor perspectiva de poder ser outro, também nos acomete esse tremendo desamparo. 
    – É que as duas situações extremamente se opõem, e por isso acabam se tornando a mesma coisa. Acho que o fato de se estar sozinho, nas duas circunstâncias, é o que faz com que elas sejam ambas angustiantes.
    – Pois é, então caso eu pudesse sonhar com a liberdade, sem absolutamente nada me caçando, não resolveria nada de maneira nenhuma. 

    Houve um minuto de silêncio, onde cada um se concentrou em sua bebida matinal. As palavras recém ditas, ainda frescas, precisavam de tempo para secar. Nesse ínterim, o gato apareceu, pulou por sobre a cama e se colocou entre nós dois, passando o seu olhar amarelo dela para mim, de mim para ela. Estava com fome. 

    – Será que os sonhos dele são tão ferrados assim como os nossos? Digo, com o que será que o Orfeu sonha? 
    – Como saber, não é? Mas tu vês e sabes da maneira como em muitas ocasiões ele se debate todo enquanto dorme. Lembra quando ele miou dormindo!? Ha ha! Com certeza havia ali um sonho bastante intenso. Só espero que tenha sido um sonho bom, um onde houvesse um mundo feito dos sachês de comida que ele mais gosta, onde também houvesse muitos outros gatinhos que pudessem fazer amizade com ele. O Orfeu ama companhia, não é? Deve sonhar com coisas desse tipo, é certo. 
    – Ha ha! Sim, mesmo os gatos realizam seus desejos em sonhos… 
    – Tá, mas e aí, me conta mais sobre o seu sonho. Não consegues me dizer algo além do que já disse?     – Claro, consigo sim, vou contar. 

    O gato desistiu de nos olhar e pedir silenciosamente pelo seu café da manhã, deu duas voltas em torno de si mesmo e deitou-se entre as minhas pernas e as dela. Uma mão com dedos finos e delicados começou a acarinhar-lhe as orelhas e a cabeça. O ar leve e manso do quarto parecia não fazer jus ao que eu comecei lentamente a contar. 

    – Eu estava na casa de meu pai. Tu sabes, lá onde por muito tempo eu morei durante a minha infância e juventude. Era noite, as lâmpadas da casa, todas amarelas, não davam conta de produzir luz o suficiente para que se pudesse enxergar perfeitamente. Eu estava em meu quarto, deitado na cama, quando ouvi uma perturbação vinda da janela. Se fosse de verdade, provavelmente eu cederia ao medo de abrir a janela para verificar o que era e ficaria quieto na minha esperando que aquele barulho não retornasse. Não sei qual ruído era, para ser sincero não posso sequer afirmar que fosse um barulho, um som, algo sonoro. Era uma perturbação, a janela estava me chamando a atenção para que eu a abrisse. E eu a abri e olhei para fora. Mas nada. Não percebi nada fora do comum, tudo o que eu vi era o mais do mesmo, toda aquela vista que já estava saturada, cravada em meu cérebro. A praça em frente da casa, as altas árvores, o muro enorme, o hospital no fim da rua. Então, tudo ficou tremendamente quieto e eu voltei para dentro, abri a porta do meu quarto que dava para a cozinha e descobri lá a figura do meu pai sentado à mesa. Ele estava totalmente imóvel, e a sensação era como se eu soubesse que não adiantava eu fazer nada, ele continuaria sem se mover, pois eu não o chamei e tampouco o toquei. Ele era uma estátua e eu sabia disso. Neste instante, aquela perturbação de antes retornou, só que desta vez não se concentrava somente em uma janela ou em qualquer outro objeto específico. Ela estava em todo lugar, vinha de todas as direções, numa palavra, ela estava próxima demais, colada em mim, pior, dentro de mim. Não pude conter os meus pés e comecei a correr, desesperadamente fui em direção à porta de saída e me coloquei para fora da casa e me perdi pelas ruas, desatinado. A perturbação ficava cada vez mais intensa, intensa, intensa, não importava o quão rápido eu corresse. Eu fugia e sentia que algo estava atrás de mim. Por fim, eu senti que havia sido capturado. Então eu fechei fortemente os meus olhos, quando os abri novamente eu estava acordado. 
    – Caramba, que sonho! Você tem sonhado demais com isso de ser perseguido. Muito curioso. Essas recorrências não devem ser ignoradas, é muito estranho... 
    – É verdade, algo sempre está vindo atrás de mim quando eu durmo, gostaria tanto de saber o que é e o motivo disso! 

    De repente, um raio amarelo de luz solar entrou pelo espaço aberto da janela e clareou ainda mais o ambiente. O gato, ao ver a luz, sentiu-se atraído pela janela, levantou o corpo e pulou plasticamente sobre nós para alcançar a mesa a fim de olhar a paisagem e o movimento de fora. Para ele, havia também na janela algum tipo de perturbação, pensei, torcendo para não ser o único a sentir aquilo. 

    – Vou ali servir o café da manhã do Orfeu, ele deve estar faminto. 
    – Certo, eu vou tomar um banho, depois do almoço vamos sair, como combinamos, certo? 
    – Sim, claro, parece que o Sol quis aparecer mesmo, então é melhor aproveitar. 

    Levantei da cama e fui para a sala, onde ficava a tigela de comida do Orfeu. Ao perceber que era essa a minha intenção, ele sacrificou tudo o que a janela lhe proporcionava e veio correndo em minha direção, miando ensandecidamente. Os grãos de ração caíram e preencheram a tigela, e o gato se colocou a comer. Enquanto ele matava a fome, sentei-me no chão ao seu lado e pus-me a observá-lo e a pensar sobre o sonho que tive, procurando significados ocultos. Na época em que eu tinha esses sonhos eu sabia que havia de verdade algo que me perseguia na vida real e não apenas enquanto eu dormia. Existia, sempre a um passo atrás, alguma coisa. Alguma coisa terrível que no fim das contas me capturaria. Eu apenas não sabia, não imaginava, não tinha a menor ideia, de que isso fosse acontecer tão cedo. 


erik rosa

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