Azul pastel

Sob a luz do sol de uma manhã já envelhecida jaz numa pequena xícara de porcelana azul pastel o resto do café recém-passado, esquecido e deixado para trás pela chegada repentina de uma lembrança há muito não lembrada. Você, sentado na cadeira da ponta esquerda da mesa, ensimesmado e perdido nos próprios pensamentos, não consegue aproveitar a sensação de suave calor que o raio de sol provoca em seu rosto, já tão acostumado com o frio do sul. Absorvido pela imagem, você não move um músculo. Seus olhos não apontam para lugar nenhum.

Uma mulher de cabelos originariamente crespos, mas que desde sempre se aperfeiçoou em diminuí-los e alisá-los, termina rapidamente de prendê-los e começa a preparar o café. Mais uma vez faz calor numa manhã que acabou de nascer. Você desperta do seu mais tranquilo sono ao som das louças batendo na cozinha, mas antes de se levantar fica deitado em silêncio por mais algum tempo a fim de se recordar onde estava pouco antes de dormir. Dos seus costumes infantis, o mais íntimo e solitário era o de fantasiar sobre a sua vida todas as noites quando ia para cama. Com o apagar das luzes e o relaxar dos músculos, você imaginava acontecimentos e moldava a realidade, ditando o ritmo das cenas vividas e construindo, à medida que desejasse, cada aspecto da sua vida. Colocava-se em situações que somente uma criança como você pudesse imaginar e desejar. Isso você fazia todas as noites sem exceção, preparava-se psicologicamente na cama e iniciava do ponto onde a narrativa imaginada na noite anterior havia parado, produzindo, dessa forma, uma longa história onde você era protagonista e vivia o que quer que a sua vontade pedisse. Esse costume era tão importante para você que, ao despertar na manhã seguinte, pouco se lhe dava saber o que havia sonhado durante o sono. A única coisa que valia era poder lembrar-se em que momento da fantasia havia parado para poder dar prosseguimento. Por isso havia, durante o dia, uma enorme ansiedade para que a noite chegasse e você pudesse continuar a sua tão íntima e solitária história; e embora ainda não soubesse naquele tempo, o fato era que essas ingênuas imaginações alimentavam tão grandemente o seu espírito infantil, que elas eram as maiores responsáveis por você não ter perdido, já aos nove anos de idade, toda a esperança e a alegria. Em verdade, há quase sempre uma maior disposição em imaginar e fantasiar nas crianças que são privadas de viver certas realidades que somente a abundância material pode fazer acontecer. Talvez hoje, sentado na cadeira da ponta da mesa sem sentir o raio de sol, você julgue que foi exatamente no instante em que a capacidade de inventar a vida todas as noites se perdeu, que uma luz verde se apagou dentro de você. E talvez, você também considere que toda a sua vida adulta seja permeada pelo eterno luto de um dia ter sido – e não ser mais e nunca mais – uma criança que imaginava tão descompromissadamente a sua própria realidade.

Você se levanta, lança para o lado o cobertor e senta-se na lateral da cama. Da cozinha chega o cheiro característico do café recém passado, que é mais intenso quando sentido por alguém ainda em vias de se despertar por completo. Levado pelo cheiro, você maquinalmente se levanta e caminha em direção ao banheiro para lavar o rosto. Ainda sonolento, você fixa o olhar em seu reflexo no espelho. Uma cabeça pequena com os cabelos muito raspados mais lhe parece um enorme ovo marrom. Há de se passar muito tempo para que você saiba verdadeiramente como são os seus fios. Você não faz ideia, mas estas manchas, que no velho vidro do espelho te impedem de observar com maior nitidez, serão as mesmas manchas que estarão em todos os outros espelhos que você tentar se enxergar daqui para frente. Você lava o rosto e dissipa a sonolência. Com ele limpo seu reflexo no espelho tem desenhos mais perceptíveis. Ao olhar para os seus traços, você reconhece o quanto é jovem. O que fazer com a juventude é uma questão que ainda dorme pesadamente enquanto você tem nove anos de idade.

Você desponta na cozinha e precipita-se para a garrafa térmica, voluntariamente antecipando em sua boca o sabor quente do café. Contudo, só depois de servir uma generosa quantidade num copo azul pastel e após abrir o armário à procura de qualquer comida, você percebe que sua mãe não está mais na cozinha, embora você pudesse garantir que ela estava ali um minuto atrás. Uma época da sua vida em que saber que a mãe está na cozinha era a rainha das certezas. Você deixa assim por enquanto e volta para o armário aberto. Não encontra nada de comer que possa acompanhar o café e então decide rumar à mesa – impressionante como você, com o tempo, perdeu essa certeza sobre o que fazer, mesmo as ações mais pequenas como ir do armário à mesa. Você se senta numa das cadeiras e apanha o copo de café com as duas mãos. Incomoda-se com o excessivo calor nos dedos e repousa de volta o copo sobre a mesa. Olha-o meio desatento. Suas laterais têm uns desenhos que você não pode definir. Hoje em dia você compra canecas lisas sem desenho, mas ainda gosta de cores. Ainda. Você ainda gosta de cores e preza pelas sessenta bilhões que a câmera fotográfica é capaz de reproduzir nas imagens, mas ainda assim as edita com um filtro em preto e branco. Acha que elas combinam mais com as palavras que escreve.

Você de repente esquece o café pela metade no copo. Uma dúvida repentina lhe sequestra desse ritual gastronômico da manhã. Ensimesmado, você faz uma pergunta que nunca na sua vida será levantada e respondida de uma vez por todas: para onde foi a mãe? A primeira vez que você não consegue beber o seu café até o fim.

erik rosa




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