o cheiro do bolo da vizinha da gaveta seis

    A janela do meu quarto, no quarto andar do prédio quatro da rua cinco de maio, não existia. Nem porta existia. Mais certo seria dizer que eu vivia em uma gaveta, daquelas que exibem com ganância comercial os vendedores de guarda-roupas de quatro portas com cinco gavetas para meias e roupas íntimas. Como se houvesse em mim intimidade suficiente para guardar. 
    Talvez há. Com o calor que faz aqui dentro não mais reconheço meus contornos. A vizinha da gaveta três grita que lhe preservem os limites. Eu não entendo. Antes de acordar aqui eu dormia em uma cama, nada de conforto mas havia refeição. Havia atenção. E por isso regresso às horas em que, nas ruas, janelas e portas, pessoas sorriam - dentes e bocas à mostra, sem medo.
    Não, não faz tanto tempo e os comerciantes de dobradiças ainda vendiam dobradiças. E os chaveiros ainda recebiam ligações de trabalho. As gentes ainda usavam correntes nos braços e pescoço, por ornamento ou ordem judicial. Alguns usavam nos dedos e quando a perdiam era a morte. Engraçado pensar nas faces que a morte tem. Engraçado pensar na palavra "morte" e "engraçado" na mesma sentença. 
    Aqui no meu lugar asséptico de privilégios tenho tempo para pensar o tempo que lá fora já não se tem e discorro sobre a pós-vida, que sem o "pós" é "vida" apenas. Apenas vida, que vem do pó e pra ele retorna. Compreendo aí a gênese da ansiedade humana, quando nascidos do pós não nos pertence o agora.
    
    Mas se você me é atento compreende que falo de futuro. Não no sentido que te remeta à roupas prateadas e carros voadores mas no sentido que te remeta à água e ao oxigênio. 

    Se você me é atento, repara tua janela. Repara. Se ainda tens janela não as cubra, não as feche e olha, e vê. 
    Deitada na minha não mais cama, sem previsão de levantar, vivo pela primeira vez o puro presente. Pois estou aqui agora. Daqui há um minuto ainda estarei. Daqui há dois minutos também estarei. E compreendo pela primeira vez o significado corpóreo do verbo "estar". Verbo tedioso mas produtivo. E apesar dos esforços, não me entram na cabeça os motivos da Língua Inglesa que forçam "ser" habitar "estar". Estou sem ser e sou sem estar, e agradeço por pensar em Português e assim não me perder nos devaneios que levaram Hamlet a acreditar que "ser" e "não ser" eram lados opostos de uma mesma questão. 
    Aliás, Hamlet está aqui, engavetado também. Me causa náuseas ouvi-lo planejar e não agir. Mas quem poderá hoje agir, dentro de gavetas?
    Limpa tua janela, se ainda a tens. Os sinos já anunciam quatro da tarde.    
   Ontem mesmo, neste mesmo horário, haveria movimentação intensa no quarto andar do prédio quatro da rua cinco de maio. Mas hoje é o pós-ontem e hoje já não há. 
    Me conforta ao menos estar sozinha e viver meus pós sem cerimônia. 
    De repente, soa a campainha. Um perfume gasoso toma conta do meu lar, e eu, que já fui corpo, sou agora pó. Minha gaveta se abre e mãos azuis me tiram da não mais cama enquanto escuto a campainha de Hamlet soar. O tempo chega para todo mundo, às vezes nu, às vezes trajando luto. Ali, o tempo puxava meus pés granulosos com luvas de borracha. 
    Tanto ansiei pelo tato de alguém. Tanto sonhei com abraços e embalos mas sempre sozinha. Sonhando sozinha, vivendo sozinha, estando sozinha. Mudando sozinha. Tanto ansiei, que agora, reduzida a vida à pó, poucas gramas sobre uma pequena mão, me sinto enfim segura. Desfeita mas segura. Pequena mas segura. Cinza mas azul. 
    Você não deve estar entendendo nada. Tampouco sei eu onde quero chegar, sem a voz me dizendo "vire à direita". Tão pouco sei eu aqui, abraçada por luvas de borracha. 
    Os caminhos estão interditados, os buracos nas vias viraram valas de comum acesso e o cheiro do bolo da vizinha da gaveta seis ninguém mais sentiu. 
    O fato, menino, é que não se pode mais crer em fatos. Assim como nós a verdade esfarelou, e agora anda por aí, areia movediça, poeira cara e branca, abrasiva. Perfume de suíte presidencial. 
    Seria difícil prever, há dois meses, que eu hoje estaria em brasas dentro de uma gaveta, como sempre estive dentro de mim. A raiva, garoto, me fez ferver. Então vieram as febres - gerais. A população ardendo, asfixiada (o ar do inferno deve ser assim, dizia o religioso pela webcam com um filtro de cordeiro de Deus).

Madalenna Leandra



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