2017

Observo um pássaro que caminha no chão à minha frente, se ele pode voar a caminhada deve ser uma piada. A liberdade de poder riscar o céu com seu corpo e depois caminhar no chão pata por pata. Se eu soubesse voar, seria um incômodo fazer isso. Mas ainda bem que o passarinho não vê graça em nada e vive sua vida de ser o que é. Eu, no entanto, estou aqui e questiono essa cena. É como quando abri os olhos e não sabia onde estava e aquela festa acontecia com muita gente dançando e eu ali.

Não, a questão é que nenhuma das duas coisas têm sentido em comum.
Agora é quase noite, atordoada minha mente tenta me fazer esquecer algo no meu caminho no hoje. Daria quase tudo por uma distração barata que me deixasse esquecida. Caminho e olho alguns amigos rindo com alegria e tenho medo disso. Como tanta ingenuidade ao pensar que se pode rir? Não nesse dia. Não quando tudo é motivo para silêncio e esquecer, esquecer, esquecer.

Se eu fosse um pássaro não teria sofrido o que me aconteceu. Ou se eu fosse outra coisa, qualquer outra pessoa também. Caso eu fosse um alguém com força bruta e não com outra força mais sutil. O que eu tenho? Aquilo que o homem disse e esse dizer nem pode ser descrito.

O homem me ameaçou de morte. Nada mais poderia se comparar a isso. Ele disse com verdade, não foi uma ameaça sem vontade. E a vontade é que me perturba. Questionou se era a morte que eu queria. Gostaria de morrer sim, mas porque ele ousou fazer essa pergunta. Mas uma morte da minha crença em qualquer coisa do mundo - do afeto talvez. Não do corpo. Pois esse ainda pode perambular, já que o homem não fez nada. Porém, ele disse. E o dizer não se cancela mais. Uma vez dito: para sempre dito. Outra palavra não substitui nenhuma.

Minha memória é venenosa. Um dia ela pode me matar, mas até lá esse homem soará no meu ouvido. Se assim te parece, homem, que eu deveria não estar aqui, a mim fizestes ter certeza que aqui devo estar. Gostaria de me distrair para não pensar na proposta que ele me fez. Cheguei no laguinho, vejo água e tenho lágrimas nos olhos, não consigo mais amar nada, imagino que será impossível agora. Quando o homem disse, eu tremi como nunca pensei ser possível, meu corpo todo balançou incontrolável, antes eu não havia dado meu corpo inteiro ao sentimento que alguém me causa. Por que então não estaria dada a um novo mundo que nada sei? Se lá é possível o homem ameaçar minha vida…
O homem não sumiu. Ele não sumirá a cada dia. Mas preciso que desapareça. Se eu fosse um pássaro teria ido para longe. Não, se eu fosse uma outra pessoa, esqueceria. Não, sendo eu, essa dor é aguda. Sendo eu, o homem é o novo pesadelo de criança enquanto adulta. Amaria que essa história fosse uma ficção. Uma música. Uma carta. Mas ela é um dia na minha vida.

Vou para casa. Deito. Sonho. No sonho sou um pássaro voando alto, fugindo de uma chuva forte. Converso com as nuvens, abro as asas coloridas e risco o céu de várias cores quentes, as nuvens pesadas somem. O pássaro nunca toca o chão, as minhas asas começam a crescer e doem, agora sou um pássaro de dois metros de altura, enorme. O céu perto de mim parece pequeno. Sou lindo, enorme. Meu peito dói, sigo voando, meu peito abre. Voo com dificuldade. Meu peito abre todo e chove sangue do céu.

Jesline Cantos



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