Mil pesos, uma medida

     Sou demais e sinto demais. Condenado a ser o herdeiro de tudo o que deixaram aqueles que viveram antes de mim, herdei as mais nobres formas já criadas e tudo o que um dia foi considerado o ápice espiritual do ser humano, assim me tornando o fruto, resultado de todas as coisas cultivadas como belas e boas. Herdei também toda a exuberância da crueldade dos meus póstumos e trago comigo a mortificação de todos os lascivos que já mancharam este mundo. Eis que eu, filho legítimo e descendente direto dos erros e acertos humanos, tenho como único destino ser, enquanto vivente, responsável por toda a humanidade, o baú sagrado onde se depositam todas as esperanças e medos, enquanto compartilho da alegria simples dos mais pobres e da melancolia opaca dos abastados. E sendo o responsável, cabe a mim atravessar os limites do mal e do bem até o ponto onde eles se chocam e confundem-se. Resta a mim dizer quem fomos, quem somos e o que seremos. Inventar a medida e medir o mundo, descobrir o seu valor. E pagar o alto preço por existir à minha maneira. Aceitar a obrigatoriedade em dar à vida tanto quanto ela me dá, e apesar da minha insuficiência, somente a mim tal missão foi destinada. Tarefa inglória, milhares de anos e ainda não aprendi. Quando a consciência brotou em mim, suspeitei que fosse um presente generoso, porém entendi tardiamente que tratava-se na verdade de uma espécie de esmola, algo rudimentar, o básico para que eu pudesse sobreviver. Meu primeiro e maior erro foi ter confiado a minha alma, o meu corpo, toda a minha existência à esse órgão mal acabado, a consciência. Acabei por me tornar escravo, docilmente sobrepujado por tão reles senhor; vassalo de minhas próprias muletas. Contudo, é tempo de eu pertencer a mim mesmo. Portanto lanço aqui um ataque às minhas muletas, ainda que eu tenha em mente que atacando-as assim eu também vá perecer. Mas é para que nasça algo novo.

     A consciência oferece-me incontáveis falsas assistências para que eu continue sobrevivendo, tantas delas consideradas até mais essenciais do que a própria vida, porém a mais paradoxal, fajuta e indispensável é a assistência da valoração. Atribuir valor às coisas do mundo e do não-mundo é algo que tenho aprendido desde sempre, pois não encontrei jeito de me mover sem valorar. Como escolher sem julgar? Infelizmente para mim, o meu trajeto não está desenhado nitidamente à minha frente e para decidir qual dos caminhos tomar é preciso que eu os ponha lado a lado, me transforme em juiz e julgue. Tristemente forçado a cometer a maior insanidade, é preciso que eu compare, seja senhor da vida da maneira mais violenta e claudicante. A comparação é como uma arma nas mãos, deveria causar vergonha só o fato de pensar em usá-la.

     Em minha loucura cotidiana, a comparação é o sintoma mais evidente da psicose a qual herdei. Tomo por natural o ato de comparar duas coisas sem pensar no absurdo envolvido. É que quando o absurdo perde o seu caráter extraordinário, ele se torna tão parte da vida ordinária quanto possível. Quando a loucura é diagnosticada, transforma-se em transtorno. Algo comum e conhecido. Como posso achar possuir o direito, ou sequer a habilidade, de pôr realidades distintas entre si numa balança intelectual e, com ar de um grande deus, me empenhar em julgá-las? Mesmo coisas que tomo por semelhantes não podem ser comparadas porque qualquer diferença existente entre elas evidencia outras infinitas diferenças. A minha loucura do dia-a-dia consiste em eu acreditar piamente que para todas as coisas do mundo há um peso para se usar como medida. Hoje esse peso possui vários nomes inventados: dólar, euro, real, etc. Qual não é o absurdo ao se empregar às coisas esses “valores equivalentes”. Quando alcanço o estágio em que vidas podem ser comparadas, essa minha loucura vira assassina. O que mais ouço por aí é que para eu ser feliz preciso parar de me comparar aos outros; em realidade não posso nem mesmo me comparar a mim mesmo, pois um Eu que já não sou mais transforma-se imediatamente em outro em relação ao meu Eu atual. Li num livro algo como que a vida não pode ser avaliada de maneira nenhuma, não podemos compará-la pois só se vive uma vez, e precisaria de no mínimo duas vidas para que se possa cometer a audácia de avaliá-las. É por demais problemático valorar algo a partir da alteridade, as coisas perdem o seu valor nelas mesmas e ficamos apenas trocando palavras que não tocam em nada.

     “A raiz da infelicidade humana está na comparação”, diz Kierkegaard, e qual não é a infelicidade que sinto ao deparar-me com o fato de que a comparação não pode ser feita de maneira justa e legítima com realidades distintas, e que para piorar eu não encontraria em lugar algum do mundo ou fora dele qualquer igualdade entre realidades que me permitisse gozar, sem culpa alguma, da comparação e do julgamento, dois atributos que somente um deus poderia dar-se ao luxo de usufruir. Sem sentir qualquer orgulho, sou o herdeiro da humanidade e o responsável por ela, tenho que admitir os erros e olhá-los de perto. Seria melhor que eu parasse de julgar e começasse a viver.

erik rosa


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