O eterno domingo

          Apesar da relatividade do tempo, é apenas racionalmente que ele se mostra como relativo. Ao contrário, na vida vivida, ele jamais o é. Ora fugaz, ora arrastado, quando se está em contato direto com o seu fluxo, o tempo sempre é absoluto naquilo que se mostra. Perceba que é tarefa impossível, num momento de alegria ou êxtase, termos em nossa mente a noção do quanto é indiferente o relógio e vagaroso o seu tic-tac; na mesma medida, também não acontece, em nenhuma hipótese, de o sofrimento sumir assim que se piscam os olhos, pois, quando ele nos acomete, sempre dá a impressão de que durará até mais tempo do que o próprio sofredor. Eis um exemplo, tão real quanto possível – pois é o que está acontecendo neste exato momento –, sobre como o tempo é absoluto e esmagador e sobre como as nossas convenções para entendê-lo não passam de cuidado paliativo para as angústias que ele nos força a sentir, e que são mais intensas quando se dão certas situações específicas. O caso é que agora o meu calendário digital marca sexta-feira, porém essa é uma sexta-feira em que a expressão “sextou” — tão usual pela minha quase feliz geração — em momento nenhum brota saltitante na tela do meu celular. Não há convites. Não haverá festa, bebedeira ou agitação. Ninguém sairá hoje para se divertir e se esquecer, pois o “sextou” se acabou. Estamos em quarentena e, ao menos por enquanto, o que haverá será o silêncio; e não preciso dizer ao que o silêncio leva.

          Nietzsche estava completamente convencido de que o esquecimento é um processo ativo do corpo e do espírito. O esquecer seria um funcionamento — fisiológico, diria ele — que demandaria tanta energia quanto o lembrar, ou até mais. Quem não conseguisse esquecer e ficasse sempre a remoer as ocorrências, sofreria de algo como uma doença crônica cujos sintomas sempre retornariam e impediriam o próprio fluxo vital das coisas e de si. Seria um Eterno Retorno do mesmo virado às avessas. E somente um sujeito elevado poderia viver e sentir realmente a vida enquanto digere bem os acontecimentos, mesmo que eles tenham marcado a ferro e fogo até o mais íntimo da sua alma. Para Nietzsche, só respeitando o destino e seus caminhos incertos é que poderíamos ser dignos dele.

          Viveríamos todos assim um dia, porém esse dia não é hoje, pois compreendemos muito errado o que significa esquecer e deixar o tempo fazer o seu papel. Trocamos o sublime esquecimento, que permite que nos modifiquemos e que nos sintamos sempre novos, por um jeito todo bizarro de se esquecer cuja única coisa que é verdadeiramente esquecida somos nós próprios enquanto nos agarramos mesquinhamente à toda e qualquer migalha da vida para fazer dela nossa pífia razão de ser. Nos esquecemos e vivemos por uma carreira, por um nome ou por dinheiro. É a migalha da migalha. Entretanto, o caso agora é muito peculiar, e uma nuvem escura paira sobre todas as cabeças: como irão as pessoas esquecer de si mesmas enquanto vivem encurraladas em um eterno domingo provocado por um vírus há muito tempo engatilhado pelos nossos mais encardidos vícios? Sem “sextou” e tendo que ficar em casa a poucos metros do espelho do banheiro, forçados a encarar a si mesmos e aqueles com quem dormem juntos, o que será das pessoas e dos seus castelos? Quem tem de trabalhar, mesmo vestindo máscara, ainda terá a real sensação de que estará trabalhando em um domingo sem fim, pois nas ruas o que vai se ver será o conteúdo vazio da fratura exposta do nosso modern way of life: lojas fechadas e o silêncio, filho primogênito do Nada. Assim, levanto insistentemente a questão, o mais alto que posso: como vamos esquecer de nós mesmos neste domingo que não mostra o seu limite? 

          Se eu suportar olhar para mim num dia como esse e fazer o que tiver que ser feito, entenderei o que realmente Nietzsche quis dizer e pararei de confundir o esquecimento, próprio do espírito, com a fuga aterrorizada do homem que procura no "sextou" o caminho para longe de si. Neste eterno domingo em casa, frente à minha vida, de duas, uma: ou me encaro e me renovo, ou me entorpeço, fujo dos espelhos e me esqueço.

erik rosa


Comentários