O reencontro do homem cego com o menino que sabia olhar
Foi o que aconteceu comigo somente na minha infância. Depois, nunca mais. Talvez eu pudesse apostar qualquer coisa que com você também deva ter sido assim, pois grande parte das coisas que vivemos já foram sentidas por muitas outras pessoas antes de nós, o que faz com que frequentemente vivamos a mesma velha história, inédita apenas para a gente. Quantas não foram as vezes que eu sorri os teus sorrisos e você chorou as minhas lágrimas...
Falo dos atos de ver e de encontrar no escuro. O pirralho que eu era sabia bem disso. Dava as horas avançadas da tarde, o Sol caia e o breu tomava conta. Cansados de brincar o dia todo, os meninos reunidos na calçada somente esperavam pela última brincadeira, que só era possível quando sumisse a luz maior e com ela os contornos do mundo. Era o esconde - esconde. A rua fervia. Havia algo de inconsciente em nós que começávamos a brincar sem dizer palavra a respeito não avisando ninguém, o último que não conseguia se esconder era quem procurava primeiro. Daquela vez tinha sido eu, pernas lentas, porém, olhos rápidos. Depois de poucos minutos não havia mais nada nem ninguém perto de mim, todos já estavam fundidos com a escuridão e apenas me restava utilizar do meu antigo dom de procurar no escuro. Os guris se escondiam nos mais diferentes locais, buracos, moitas, por detrás dos muros e em cima das árvores. A partir daquele momento tudo era questão de olho vivo e tempo.
Se, por acaso eu ensandecesse e fosse tentar fazer isso agora, jamais conseguiria encontrar ninguém e tampouco decodificar a paisagem, pois eu perdi os meus poderes infantis de enxergar à noite. O que significa que eu me enfraqueci. Para que me servem os olhos do hoje se agora a tarefa é outra? Não tenho mais que encontrar ninguém no interior das sombras, pois agora eu preciso me encontrar em plena luz do dia. Eu cresci e me tornei este que das oito às seis não pode contemplar o Sol porque me disseram que isso não é necessário, que outra coisa é que é, aquilo com que se pode comprar até o Sol. E quando chegam as altas horas, não posso admirar a lua porque, ao contrário do que dizem, a noite não é uma criança (se fosse, eu ainda conseguiria ver as diferentes formas do mundo no escuro), mas é adulta demais. Perdi o encanto dos olhos que sabem olhar as coisas que merecem ser olhadas. Quando era pequeno eu sabia quem eu era porque a minha identidade se confundia com o meu brincar, eu era aquele que olhava e encontrava em meio às trevas. Mas o que é isso da adultice que torna cego quem sabia olhar, corta as pernas e asas de quem outrora corria e se lançava aos céus a voar? Há ideias e teorias acerca disso, mas nada muito certeiro que se aplique a mim. A única coisa certa é que hoje vivo a procura dos meus antigos olhos de criança, e não preciso explicar muito sobre quão gigantesca é a dificuldade de se procurar justamente por aquilo que me permitia o procurar.
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