Ler Clarice
Existem certos autores e autoras, certos poetas, que fazem muita falta quando você fica algum tempo sem ler nada deles. É como sentir saudade de uma grande amizade, ou como se você ficasse muito tempo sem ir à terapia. Parece que resíduos de vida ficam acumulados na garganta que só são expelidos quando esse poeta lhe beija a boca e toca a sua alma. Foi algo a ver com isso que eu estava dizendo à ela há pouco, e, é claro que ela me entendeu perfeitamente porque eu estava me referindo à Clarice Lispector. "Preciso ler Clarice", foram as minhas palavras. Ao ouvi-las, ela me lançou um olhar gracioso que delatava todo o seu entendimento. É porque foi exatamente ela quem me apresentou essa tocadora de almas em forma de escritora. Na verdade, antes disso eu até que já tinha lido um dos seus romances, A Hora da Estrela, e por isso já poderia dizer que conhecia Clarice. Mas sabe quando você só conhece alguém de vistas ou apenas troca cumprimentos com a pessoa? Era mais ou menos assim que eu via Clarice até que ela nos apresentasse me presenteando com Água Viva, livro que me fez mergulhar. Depois eu fui construindo a minha relação com Clarice a partir das leituras que fazíamos juntos e das nossas conversas. Ela quase que encarnava Clarice na minha vida me falando sobre as suas vivências, as suas dores, os seus gestos; tudo de uma maneira muito literária. Até a maneira como ela escrevia seus próprios textos me fazia quase crer que se tratava de uma Lispector. Me falava de Clarice como alguém que fala de uma grande amiga de longa data que eu ainda não conhecia. Mas na verdade ela me falava de si a partir de Clarice, e assim fui conhecendo duas pessoas em uma.
Depois de um certo tempo eu comecei a conversar a sós com Clarice, ler os meus próprios sentimentos ecoando escritos em seus romances, contos e crônicas; já estava completamente destinado a ter de encarar a mim mesmo em seus livros. Mas são experiências que sempre vão contar com a participação dela, que nos apresentou, porque um livro jamais significa apenas um livro.
Existem estes autores e autoras que fazem muita falta quando você fica sem, assim como outras coisas na vida. São os mais importantes porque, além de tudo, estão ligados emocionalmente a você a partir de pessoas, lugares ou coisas que estão para além das palavras escritas. Estão na vida de quem vive e lê tão essencialmente que são parte da pessoa. Nesse meu caso, quando penso em Clarice vejo dois rostos. O de Clarice e o dela. Só isso já mostra como as nossas vivências são um amálgama de pessoas e sentimentos que se misturam e criam sensações. Pessoas na vida da gente que mais se parecem com uma poesia, e poemas que têm tanta substância que fazem quem os escreveu aparecer na nossa frente para termos uma conversa profunda até a alma. Preciso ler Clarice...
Erik Rosa
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