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Mostrando postagens de setembro, 2019

Ler Clarice

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  Existem certos autores e autoras, certos poetas, que fazem muita falta quando você fica algum tempo sem ler nada deles. É como sentir saudade de uma grande amizade, ou como se você ficasse muito tempo sem ir à terapia. Parece que resíduos de vida ficam acumulados na garganta que só são expelidos quando esse poeta lhe beija a boca e toca a sua alma. Foi algo a ver com isso que eu estava dizendo à ela há pouco, e, é claro que ela me entendeu perfeitamente porque eu estava me referindo à Clarice Lispector. "Preciso ler Clarice", foram as minhas palavras. Ao ouvi-las, ela me lançou um olhar gracioso que delatava todo o seu entendimento. É porque foi exatamente ela quem me apresentou essa tocadora de almas em forma de escritora. Na verdade, antes disso eu até que já tinha lido um dos seus romances, A Hora da Estrela, e por isso já poderia dizer que conhecia Clarice. Mas sabe quando você só conhece alguém de vistas ou apenas troca cumprimentos com a pessoa? Era mais ou menos ass...

'Poema em linha reta', por Fernando Pessoa e Jesline Cantos

Poema em linha reta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente...

Poema do cansaço

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De repente percebo, ora que desencanto seco Nessa longa estrada Sem sentido sem concertos De ferrenha estrada estreita Milhões de passos caminham Com seus espelhos Todos em função de desempenho Fartos de si mesmos Em cada instante, em cada passo Sempre o mesmo Olho esse mundo e me desaconchego Não quero tantos espelhos Não quero tanto de mim Não quero essa estrada Mas se não pertenço a ela… pertenço a nada? Filipe Zoppo

O brincar como trágica obra de arte

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O ser humano tem sido um insatisfeito. Enquanto humanidade ou mesmo enquanto indivíduo, ele viveu sempre a história da sua insuficiência. Nasce sendo a criatura mais frágil do mundo, precisando de toda espécie de cuidado e demorando a se tornar independente o suficiente para viver por conta própria. Mas mesmo depois, quando a independência finalmente é adquirida, parece sofrer por ainda necessitar de algo mais poderoso do que ele para com que possa se apoiar — nesse sentido o ser humano é uma falta, infinita operação de subtração que luta eternamente para não sê-la.           Muito antes de possuir uma clara consciência da sua condição de falta, na sua infância, o humano inventou uma maneira de lidar com esse imenso espaço vazio, maneira que o acompanhará como salvadora até o fim da sua vida: ele inventou a arte. Era para o humano já ter perecido há muito tempo se não fosse a sua força criativa artística que, sendo idiossincrática dele, o ajudou a suportar os d...