Para se ler amanhã

Os textos a seguir foram produzidos a partir do Desafio de Escrita idealizado por Andréia Pires, editora da Concha Editora.


01| Ponto de Partida

De todos os aprendizados que a vida me levou a experienciar, o que tenho carregado sempre na ponta da língua, pronto para dizer a quem perguntar, é o aprendizado da sensibilidade. Creio que no íntimo a vida não me ensinou nenhuma verdade sobre ela mesma, não chegará o ponto em que me presenteará com a resposta que tanto busco; porém, o que ela incessantemente tem me feito enxergar é que é preciso que eu esteja sensível aos seus toques.
Se o Erik de uns tempos atrás chegava, em muitas ocasiões, a um estado profundo de indiferença para com a vida, hoje me permito dizer que há muito no mundo que me faz sorrir e chorar. A vida, não a ideal, mas a propriamente vivida me ensinou a ser sensível, a ser afetado por ela.

Certa vez escrevi que a existência poderia ser valorada em termos da sensibilidade daquele que existe: se tu sentes, tu vives; se não sentes, sinto muito. Lição preciosa que levo comigo e que me permite sentir o infinito num simples gole de café quente. É preciso sentir para que haja movimento e, consequentemente, vida. Por isso me mantenho atento às investidas do mundo sobre mim, sejam essas investidas tapas ou beijos: quero senti-las. Como Lou Salomé escreveu, quero viver e ser afetado pela vida com tudo o que ela tiver. Se não for para eu ser infinitamente feliz, então que seja irremediavelmente triste.


02 | O Todo e a Parte

Eis a metáfora perfeita: os meus passos sobre esse chão seguem a mesma dança sinuosa dos meus cachos pretos. Em oposição ao que querem de mim, que eu seja alguém claro, prático, lógico, óbvio e analítico, que tenha tudo decorado e que repita, prefiro respeitar os meus traços e a minha cor, o louco emaranhado dos meus cachos crespos. Assim como os meus fios, não quero seguir a correnteza uniforme desse mundo branco e liso e caminhar apenas numa direção — para baixo, como é comum de ser ver. Estou interessado em subir ao alto, me expandir, sentir a potência que pode surgir de alguém que às duras penas torna-se quem se é. E ver o que acontece.

O meu cabelo representa, para além das palavras aqui escritas, algo como que a energia vital que marca o passo e a direção da minha trajetória — dolorida, pois somente quem se identificar com o black pode lembrar-se do tempo em que não podia deixá-lo ser e tinha que suprimi-lo.

Essa negra lã aqui evidencia a minha materialidade, o meu corpo, mostra quem eu sou e até onde posso ir — bem alto. Desde o dia em que o deixei crescer ele tem feito a minha cabeça.


03 | O Corpo aconchega

O tempo e a existência passam por baixo da minha janela, enquanto aqui dentro persevera a escuridão. A janela do quarto tem sido o meu portal dimensional pessoal mais do que a própria porta. Eu não saio.
Quando fecho-a — a salvo nesse não-mundo artificial— fico em paz para escrever e para dormir e quem sabe sonhar. Quando abro-a posso visualizar a prova maior da existência do mundo e mergulhar nele — não agora pois mesmo o mundo não se amunda mais na quarentena.

Janelas são a síntese da ambiguidade humana:
Nos fechamos trancafiados entre quatro paredes por motivo de terror buscando desesperadamente segurança e um pouco de calor — voando de volta ao útero materno; contudo, precisamos construir e escancarar janelas porque o que nos faz mesmo viver encontra-se lá fora no mundo, ao ar livre, junto com tudo aquilo que pode nos fazer sofrer e tanto nos horroriza. Para além da janela do quarto existe o “tudo e misturado” da vida, o pôr do Sol tão belo que enche o coração, mas que por isso mesmo o completa de tristeza.

Há maneiras e maneiras de se viver e usamos as nossas janelas na medida em que nos cabe. Nesses dias espero que elas tenham sido lembradas pela gente, pois se os olhos são a janela da alma, as janelas devem transparecer a alma da casa. Já anunciaram a morte da janela, a televisão a havia matado; porém tenho esperança, ela não é feita de carne e ossos para ter de morrer eternamente.

Abro a minha e me precipito para frente — encontro mil utilidades para ela. Embaixo, na rua, não há uma tabacaria, mas há metafísica. Há o ar úmido e a areia. Há a névoa riograndina. Há metafísica nesse ar que só pode ser entendida ao senti-lo através de uma janela aberta.

Há a necessidade de metafísica no mundo, há a necessidade de ar, pois se mesmo as prisões possuem as suas janelas.


04 | Um Dia na Vida

Havia algo errado ao acordar. Aquela velha falta de perspectiva ao pisar com o primeiro pé no chão: o que fazer agora? Levantei-me maquinalmente e me fui ao banheiro, para o espelho. Tenho uma coisa com espelhos de banheiro. Parecem refletir melhor a pessoa do que qualquer outro espelho. É como se o reflexo fosse mais cru, mais verdadeiro, como se não houvesse distorções e mostrasse exatamente as coisas como são. Olhei-me e pareceu que eu estava comigo cara-a-cara, não apenas com o reflexo da minha imagem. Espelhos de banheiro são uma armadilha esquizofrênica. Te fazem ver coisas. Já experimentou por algum tempo olhar fixamente para o outro que há na sua frente no espelho?
Lavei meu rosto, coloquei qualquer roupa e saí.

Queria comprar cigarro. Havia adquirido o hábito depois que me iniciei na desventura do espelho. À medida que me aproximava do mercado, comecei a me sentir nauseado. A minha sombra aumentava de tamanho à medida que eu dava as passadas. Fixei o meu olhar nela. Esquálida e negra, formava um nítido contraste com o Sol, gordo e brilhante escalando a abóbada. “Os deuses estão fartos. A gente passa fome”, pensei.

“Onde é que eu estava indo mesmo?”
Tornei a caminhar.


05 | Do obsoleto

A obsolescência programada dos artigos vendidos pela publicidade sempre me pareceu grande demais para poder engolir. Nada mais asqueroso do que o sentimento de possuir um objeto que valerá pouco ou nada daqui uns meses. A lógica do consumo força a nossa vida a caminhar num sentido antinatural, onde a impermanência e transitoriedade comuns à tudo ganha um aspecto capitalista, no qual as coisas não desaparecem e mudam por si mesmas, mas sim pela sua relação com o valor financeiro. A partir do momento em que algo passa a não valer, não mais existe. Assim, todo esse papo sobre a mudança envolvida em nadar duas vezes no mesmo rio só pode ser compreendido atualmente se entendermos o rio como sendo um fluxo interminável de capital. Não é possível possuir duas vezes o mesmo bem, é preciso mudar e comprar outro, de preferência fazer isso bem rápido.

Porém, em tempos tão singulares para o capitalismo como os de hoje, ocorre que a obsolescência programada está sentindo uma trava no seu próprio processo. Trancados em casa não temos a possibilidade de continuar a fazer do consumo a nossa razão de ser, a prioridade é consumir apenas o necessário. Só que o necessário, se tratando de humanos, é algo muito complicado; já sabemos que somos moldados a necessitar do que não necessitamos.

Essa nossa realidade que compartilhamos, onde amar é possuir está sendo tensionada pela quarentena. Já que não podemos sair e esbanjar até o último pote de caviar e correr corridas de carros até a exaustão, somos obrigados a possuir a gente mesmo, porém nos deparamos assustados com a confirmação de que não somos objetos a serem consumidos. E o triste é que queríamos que fôssemos.

Como estou passando a quarentena fora de casa, a obsolescência que carrego comigo se tornou esse molho com as chaves dos cômodos. Nunca imaginei que em algum momento esse item se tornaria obsoleto para mim. Por agora não posso e nem preciso retornar à casa, não tenho que trancar e destrancar todos aqueles objetos meus que logo perderão o valor. Quando a quarentena acabar, ainda assim as chaves ficarão obsoletas. É que as coisas que eu tranco e selo com essas chaves me pertencem somente na minha fantasia. A propriedade é um delírio, e a única coisa que me permite acreditar nisso é o fato de conseguir fazer com que outros não usem essas coisas; assim imagino que elas são minhas. 

Entretanto, as coisas não podem se tornar obsoletas só porque em realidade não pertencem a ninguém. Na verdade elas ficam obsoletas quando são de alguém. As coisas têm que ser valorizadas em si mesmas e longe da lógica consumista. 
Fico-me agora a perguntar qual é a dessas chaves no meu bolso. Trancar o quê? Só se for pra trancar a mim.


06| Chega de Saudade

Caríssimo eu,

A tua falta se faz sentir bem fundo aqui, num lugar do coração onde somente pode doer a dor da saudade e das coisas que não têm nome. Sinto-me desamparado como uma árvore solitária no horizonte sem a tua companhia. Quando vamos finalmente nos encontrar e nos conhecer? Se o normal virar rotina novamente, será que poderíamos enfim nos ver por aí em alguma rua qualquer? Tu tens me prometido esse encontro há tanto tempo, e eu, como um estoico, tenho esperado pacientemente, mas agora já não posso mais aguentar. Estou sofrendo, meu eu.

Quando tu virás até mim e te mostrarás? Recorda de todas as coisas que disseste que iríamos fazer juntos? Tu me garantiste que assim que nos víssemos eu entenderia tudo e saberia quem sou e do que sou formado. Que enfim conheceria os meus contornos e me sentiria seguro dentro do meus limites. O conhecimento dos meus limites é algo que preciso muito, mas que você não me dá. Tu negas o alimento para um homem faminto e não se culpas. Como podes ser tão insensível? Tu me enganaste e fingiste que poderia se encontrar nos livros, em deus ou até mesmo em outras pessoas; eu te procurei sem descanso em todos eles, mas somente encontrei os teus mais insignificantes vestígios.

Preciso de ti.
Por que me prometeste as respostas que tanto busco e no momento em que por elas te imploro, tu calas?

Até quando fugirá de mim, meu eu? Até quando?


07| Se fosse um Bicho

A minha maior aspiração é me tornar, pouco a pouco, cada vez mais coruja.

Não à toa, observa-se que essa ave representa para muitos povos a sabedoria e as outras virtudes que a cercam. Seu valor é inestimável e as suas características são admiráveis; no entanto, uma particularidade da coruja, mais do que as outras, me atrai sobremaneira. Quero tornar-me coruja por motivo dos seus olhos e do que eles fazem. Quero cultivar em mim a refinada contemplação que ela denota ao observar o mundo; calma e demorada, contempla com atenção vasculhando o chão e o céu, sabendo agir com cautela e da melhor maneira possível, pois ao observar, compreende. Quero me tornar coruja para compreender.

Tornar-me coruja; mais pelos seus olhos atentos do que por suas asas, pois o abrir voo nunca deve vir antes do calmo contemplar.

erik rosa


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