Cisma
Por agora, uma límpida recordação de um sonho que tive há alguns anos me atravessa o pensamento e me faz revisitar a angústia — essa sensação de realidade suspensa onde tudo vira pó, minha mais velha amiga. Eis a recordação do sonho: um lugar onde as pessoas saíam e passeavam pelas ruas. Os homens sentavam nos bancos e liam os seus jornais, as mulheres se encaminhavam à venda para comprar frutas e legumes para suas casas enquanto as crianças se amontoavam para descobrir o mundo. A vida era levada por uma nítida lógica e todas as coisas funcionavam como num engenhoso mecanismo perfeitamente construído às custas de um intelecto arduamente refinado pela humanidade durante milênios a fio. O que todos esses homens e essas mulheres pensavam naqueles vagarosos instantes? Nas funduras de seus corações essa nítida lógica estava plantada — o mundo é bom e a vida dá certo, as coisas acontecem e tudo funciona. Temos nossos lares e nossos carros, temos parques e escolas, saneamento e correios. Temos amor e temos sexo. Temos escolha, eles diziam e se entreolhavam.
Esse sonho repetiu-se um incontável número de vezes dali para frente. Ao acordar com a luz do Sol no rosto, não liguei muito para ele e até me passou rapidamente que tê-lo sonhado me fez começar o dia com mais ânimo. Nada como uma boa dose de esperança e otimismo logo pela manhã, pensei. Hoje em dia eu dou o crédito da esperança para o fato de aquele dia ser justamente uma sexta feira; se fosse segunda feira nenhum sonho otimista poderia me causar um ganho de ânimo. Saí de casa e até às cinco estive trabalhando; durante a noite bebi com amigos e estive com uma jovem a quem fazia poucos dias que conhecera. Em suma, vivia segundo o roteiro que me deram e abracei-o com força sem exitar, assumindo ingenuamente todo o risco que se corre ao entrar num rio sem saber para onde a correnteza leva. Eu vivia um sonho durante o dia e sonhava durante à noite com a vida diurna. Se acontecesse de algo não parecer certo e alguma incerteza surgisse em minha alma, os meus sonhos acabariam com ela com mil respostas reluzentes. Isso me dava ânimo para seguir a trabalhar, a beber e a transar. Era inquestionável a beleza da vida e que essa seria muito injusta por um dia ter que acabar. Eu queria dar todos os “vivas” a que eu tinha direito e me entreter com qualquer coisa até a morte. Até ajudaria outras pessoas a se entreter até a morte. Tudo era feito para ser gozado e abusado.
E como foi que vim parar aqui, atravessado por memórias angustiantes, você me pergunta? Ah, havia algo de errado com toda aquela beleza saturada. Enquanto o planeta cobra pelo abuso que eu exercia, o meu espírito cobra o meu corpo. No capitalismo todas as coisas possuem cada uma o seu preço e temos que pagá-lo para alguém; quando não se encontra o credor temos que pagar para nós mesmos, e o meu preço foi baixo demais. Os meus monumentos longamente construídos a ferro e fogo desmoronaram, a consequência me bateu à porta e a dívida a mim cobrada me veio em forma de uma fratura, uma cisão. Meu cisma com o mundo tem sido desde então o mais doloroso divórcio. Todo ferro enferrujou-se, todo orgulho virou poeira e tudo o que um dia foi unido se separou. Foram-me revogados os sonhos nos quais as minhas certezas eram dadas de comer e em troca agora ressoam terríveis questões sem respostas mesmo nos meus mais calmos sonos. Fiquei dividido entre ser o esperançoso que trabalha e se diverte ou ser o alucinado sofredor que põe tudo em cheque um segundo antes de sair correndo sem dar explicações. Sinto o desejo de viver num mundo sem dor, porém a única coisa que sei fazer é sentir cada vez mais dor para poder alcançá-lo. A minha angústia, filha legítima da incerteza, rompeu com tudo o que já foi-me dado e dividiu tudo o que eu conheço em dois. Ao contrário da afirmação dos meus antigos sonhos, hoje parece que não possuo escolha, não consigo ir decididamente para nenhum lado. Não tenho forças para saber por onde é o caminho. Não sonho mais. Ainda vejo as pessoas imprudentemente nas ruas, os homens, as mulheres e as crianças. Entretanto, eles não têm mais aquela crença, igual a mim não conseguem mais se decidir se riem ou se choram.
erik rosa
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