Senhor das Moscas

Aqui vai um registro desesperado. Como traduzir em palavras uma experiência cujas marcas não cabem no meu corpo e na minha alma?
Meu nome é Eric, tenho onze anos. Faz dois dias que voltamos daquela ilha, e não sei ao certo quanto tempo ficamos por lá. O calendário na minha parede diz que foram poucos dias, mas meu coração está uma eternidade mais velho. Preciso lhes contar o que sinto sobre o que se passou conosco depois que o avião caiu, sobre o que sinto quando vejo o que nos tornamos.
Um grupo de crianças cruzando o oceano fugindo da guerra, eu era uma delas. Seria apenas um longo vôo que nos deixaria distante de casa, mas tudo pareceu acontecer tão rápido que quando me dei conta só pude relembrar dos momentos recém passados como um relâmpago: a falha no motor, o barulho de toneladas de metal rasgando o céu de cima a baixo, os terríveis gritos das outras crianças, o meu pavor absurdo, a escuridão. Eu nunca senti tanto medo na vida, e, meu espanto demorou a passar depois que me percebi em terra firme, numa praia, junto com os demais, todos muito machucados, salvos por um triz por não sei qual milagre. Não havia qualquer sinal dos adultos que pilotavam, e continuaria não havendo.
O que se segue são algumas palavras de quem testemunhou e viveu tudo o que se pode testemunhar e viver. Eu estava fazendo parte de um grupo de meninos com idade próximas a minha que tentava sobreviver, sem a presença de nenhum adulto, numa ilha aparentemente inabitada depois de termos sobrevivido a um acidente aéreo. Queria contar mas minhas mãos tremem tanto que não conseguirei pôr em detalhes.
 A gente tentou fazer o melhor, pelo menos no começo, eu juro que a gente tentou. Somos crianças, e eu ainda não consigo acreditar no que aconteceu, no que nós fizemos. No início tudo era uma grande mistura que envolvia brincadeira, sobrevivência, fome e trabalho em grupo; porém com o tempo as coisas foram mudando, todos os meninos começaram a ficar estranhos, eu não os reconhecia mais e nem reconhecia a mim mesmo. Ralph e Jack entraram numa disputa agressiva pelo poder de liderança do grupo que só acabou quando Jack resolveu criar seu próprio grupo, onde ele pudesse governar sozinho. Eu fui com o Jack e agora percebo a dimensão do meu erro. Eu não sei, talvez tenha escolhido isso porque ele prometeu conseguir carne para comermos, e também porque a maioria dos meninos tinha ido com ele e, além do mais, o Jack parecia legal no começo, ele brincava com a gente. Nosso grupo era numeroso e quem mandava era o Jack, ele nos deu comida e abrigo, e até pintou o rosto com o sangue do porco selvagem que matara, e nós copiamos o ato de modo a nos diferenciar de quem não era do grupo. Mas que erro, meu Deus! Olho para o que nos tornamos e choro. Por um lado eu me sentia muito forte e protegido no grupo, mas por outro me doía enormemente fazer as coisas horrendas que fazíamos tão logo o Jack ordenasse. Sem sabermos fizemos o pior que poderíamos fazer. O pior. Quando inesperadamente o resgate chegou, nem todos os meninos conseguiram voltar. 
Dois dias depois, só o que percebo em mim e nos outros é esse, por vezes infantil, mal que cada um de nós pode causar e, em volta dele, as moscas fazendo círculos no ar.

ERIK ROSA

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