Brincar de viver


Você olha a pedra tombada no chão. Um instante antes ela estava em sua mão direita sendo sacudida. Você a jogou. Agora ela ocupa um espaço em algum dos números inscritos no chão. À sua frente, a sequência de 1 a 10, cada um pintado de uma cor. E o céu, no limite. A missão é simples: chegar ao céu e voltar ao local de origem aos pulos, mas sem pisar na pedra no caminho. Você se lembra da última vez em que pulou amarelinha? Ou da última vez que foi e voltou do céu? Sem saber que seria a última vez.
O brincar requer envolvimento com a criação de uma lógica própria da brincadeira. Quando se brinca faz-se arte, pois as formas são manipuladas pelo artista. Nas mãos de quem pula amarelinha, a pedra que antes era uma pedra comum, a partir da imaginação se metamorfoseia: de pedra se transforma em gigantesco obstáculo, de simples pedaço de mundo se torna o guardião do céu, o desafio da vida. E tudo se resume nesse instante-já que se traduz em cada pulo que se dá em direção ao céu. No brincar é-se infinitas possibilidades. Da mesma maneira como Nietzsche escreveu que “o homem chega à sua maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade com que uma criança encara uma brincadeira”, a criança nunca duvida da sua brincadeira. Para ela, seja a boneca em seus braços, seja o carrinho de fricção em movimento, ou até mesmo um pedaço de madeira que se transforma em um avião, tudo é real. E ela sente intimamente que é aquilo que brinca ao dar vida ao que imagina. 
Entretanto desaprendeu-se a  brincar. Ou pelo menos se esqueceu de como se brinca. Não por causa das gerações que se passam, mas sim porque a criança brincalhona cresceu. E crescer significa deixar que o mundo desminta as criações infantis e que ensine a ser alguém comportado, reprodutor, padronizado, estéril. O caminho que todos devem trilhar, por ser uma fórmula igual para todos, transforma o artista-criança num sujeito lógico, previsível, dócil, racional, responsável, disciplinado. Esse sujeito não mais cria, só copia; não mais gera, só reitera. Assim, se constrói um adulto cuja seriedade perdeu seu tom lúdico. E eu diria que essa perda de sensibilidade infantil para com a vida só piora a situação de um sujeito adulto que se vê preso em problemas e conflitos que ele mesmo e o resto dos outros adultos criaram, pois a única coisa que se percebe quando se é criativamente infértil é o mundo do simplesmente dado, que não vai além do esvaziante dia-a-dia. Naturalmente que para piorar, qualquer forma infantil de interagir com o mundo é vista como inferior e de menor qualidade; dizem por aí que criança não é capacitada à Verdade, ou você já descobriu algum lugar onde um discurso proferido por uma criança tivesse mais valor do que o de um adulto? Também dizem que quando um adulto é peculiarmente similar à uma criança, ele não tá bem da cabeça, o que quer dizer que essa infantilidade por ele manifestada é avaliada com critérios de uma certa psiquiatria do normal e do anormal, que no fim das contas vai fazer da criança o critério para doença mental no adulto.
É claro que a solução não é apenas sair pulando amarelinha, brincando de esconde-esconde ou correndo pega-pega, pois quem já cresceu dificilmente diminui. Não vejo solução para isso.  Porém, e aqui é necessário pedirmos novamente ajuda à Nietzsche, podemos procurar mudar a lente com que olhamos o mundo onde vivemos todos os dias, usar uma lente infantil que nos permita enxergar a vida como uma grande brincadeira. A seriedade da brincadeira da criança é diferente da seriedade do trabalho adulto porque a maior regra do brincar é viver no próprio brincar, e não pensar em algo que se situa fora dele, como o adulto faz com o seu trabalho ao desempenhá-lo por dinheiro, status, ou qualquer outra coisa. Tratar a vida como brincadeira, não por ela ser puramente engraçada e leve, mas por ela possuir todos os recursos que um artista-criança precisa para fazer com que a sua vida seja uma obra de arte, uma peripécia infantil. Não é brincar com a vida, é brincar de viver.
ERIK ROSA


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